terça-feira, 3 de abril de 2012

Reportagem do Fantástico não é prova legítima para denúncia de fraude


Por João Paulo Rodrigues de Castro, no Conjur

Ilustração do Blog
O vídeo mostrado no Fantástico, em que empresas oferecem propina para ganhar licitação, não serve de prova para fundamentar ação penal contra os envolvidos. E o pior: poderá implicar a impunidade dos envolvidos em fraudes futuras.

O fundamento para inadmissibilidade da prova colhida no programa de televisão não é a ilegitimidade da prova, colhida por gravação ambiental. Isso porque a cláusula de reserva imposta no artigo 5º, XII, da CF, que determina a necessidade de autorização judicial para interceptação telefônica, não se aplica à gravação ambiental. Desse modo, quando há gravação, a proteção constitucional ocorre pela cláusula geral de proteção à privacidade, prevista no artigo 5º, X, da CF. E pode ser restringida pelo evidente interesse público de coibir práticas criminosas.

Por outro lado, a gravação efetuada pelo Fantástico, embora evidencie a prática de fatos que se amoldam a tipos penais previstos na Lei de Licitações, demonstra a prática de crime impossível. A licitação tinha o objetivo único de comprovar as suspeitas de irregularidades no Hospital do Rio de Janeiro. Tanto que o gestor de contratos era o próprio repórter. Daí por que, a par da vontade criminosa dos agentes, o meio escolhido para a prática dos crimes era absolutamente ineficaz. Nesse caso, trata-se de fato atípico, não podendo sequer haver prisão em flagrante (súmula 145 do STF).

Consequências da diferenciação entre interpretação e gravação para a restrição de direitos fundamentais

Interceptação e gravação não se confundem. Interceptação há quando a captação ocorre por um terceiro, sem a concordância dos interlocutores. Já a gravação ocorre quando o diálogo é gravado ou consentido por um dos interlocutores. Como afirmou Luiz Torquato, o que distingue a interceptação da gravação das comunicações é a presença de um terceiro[i]. Como a gravação feita pelo programa contava com a anuência do repórter, que fingia ser gestor de contratos, houve caso típico de gravação.

A relevância da distinção está em que, se houvesse interceptação, a restrição ao direito de privacidade da comunicação só poderia ocorrer na hipótese aventada pelo Constituinte. Apenas para fins penais e com prévia autorização de juiz. Nas interceptações telefônicas, deve-se admitir que o balanceamento de valores, o eventual conflito entre a privacidade e outro valor constitucional, já ocorreu por obra do Constituinte. Daí por que censurável, sob o ponto de vista acadêmico, a decisão do STJ[ii], que, numa ação cível, admitiu excepcionalmente a interceptação telefônica. O caso envolvia o rapto de um menor pelo seu genitor, e a medida se justificava para encontrar a criança. Deve-se lembrar que o postulado argumentativo da proporcionalidade, proposto por Robert Alexy, apenas justifica a ponderação entre princípios. O autor alemão, em nenhuma linha do seu livro[iii], admite utilizar a técnica da proporcionalidade para ponderar conflito entre regras e princípios.

Ilustração do Blog
Por outro lado, a restrição ao direito de privacidade das conversas gravadas é permitida, embora essa possibilidade não esteja expressa na Constituição Federal. Isso porque, como alerta Jorge Novais[iv], comentando sobre comando da Constituição Portuguesa que impede restrição de direito constitucional não autorizado expressamente pelo Constituinte:

“[...]por maior que seja o esforço analítico de delimitação da previsão normativa de direitos fundamentais ou por mais restritiva que seja a concepção da respectiva ‘facti species’, restam sempre situações de facto compreendidas pelo âmbito normativo de dois ou mais direitos fundamentais [...] os limites que afectam um direito fundamental projectam-se, inevitavelmente, ainda que de forma mais ou menos directa ou imediata, sobre as possibilidades de desenvolvimento de personalidade e de liberdade individual protegidas especificamente por outros direitos fundamentais”

No caso da gravação efetuada pelo Fantástico, ou não havia direito à privacidade a ser protegido ou esse direito deveria ceder diante do conflito com os valores da probidade administrativa e da eficiência (economicidade) na aplicação dos recursos públicos. Isso depende de considerar se certas condutas estão ou não incluídas em abstrato no âmbito de proteção das normas de direito fundamental. 

Para os que defendem a tese do suporte fático restrito, práticas criminosas não estão incluídas sequer no direito à privacidade, pois seria o mesmo que admitir, como corolário do direito à liberdade de expressão, o direito de matar um ator no palco[v]. Por outro lado, para os que defendem a teoria do suporte fático amplo, até mesmo o direito de sigilo sobre conversas que configurem crime está incluído em abstrato no âmbito de proteção do direito à privacidade. A tese do suporte fático amplo, a par do paradoxo aparente, implica admitir que restrições a direitos fundamentais dependem de fundamentação constitucional. O que não ocorre com a tese do suporte fático restrito, que, por considerar excluídas a priori, determinadas condutas do suporte fático da norma de direito fundamental, implica admitir decisões com déficit de argumentação, aparentemente racionais, mas que mascaram arbítrio na aplicação[vi].

De todo modo, o Supremo Tribunal Federal já decidiu a respeito da legitimidade das provas colhidas, em gravação de conversa, por emissora de televisão. No caso, a gravação clandestina foi realizada por alistando, a pedido da emissora, que gravou a exigência de dinheiro por Secretário da Junta de Serviço Militar para que declarasse falsamente a dispensa por excesso de contingente. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal[vii] adotou a teoria do suporte fático amplo dos direitos fundamentais, ao considerar que o direito à privacidade deveria ceder diante do interesse público:

“A questão que se coloca não é da inviolabilidade das comunicações (CF, artigo 5, XII) e, sim, de proteção da privacidade e da própria imagem (artigo 5, X). que não é um direito absoluto, devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse social

Flagrante preparado e crime de ensaio

A abertura do certame licitatório não tinha o objetivo de contratar serviços ou comprar bens. De acordo com a reportagem, a licitação teve o objetivo único de comprovar as suspeitas de irregularidades no Hospital. Tanto que o gestor de contrato era o próprio Repórter, o que evidencia a impossibilidade de a suposta licitação ensejar contratação com a Administração Pública. Portanto, o caso se enquadra em caso típico de crime de ensaio, de impossível consumação.

Não há que se levar em conta, para que se considere crime impossível, a vontade criminosa dos agentes que representavam as empresas. A ineficácia absoluta do meio ou a impropriedade do objeto estão relacionadas tão somente ao tipo objetivo. Não basta que a vontade considere idôneos os meio utilizados[viii]. O Código Penal Brasileiro adota indiscutivelmente a teoria objetiva. A controvérsia existe se a inidoneidade deve ser absoluta (teoria objetiva pura) ou relativa (teoria objetiva temperada). Desse modo, no clássico exemplo, se um ladrão enfia a mão no bolso da vítima, que guardava a carteira no outro bolso, tem-se caso de inidoneidade apenas relativa, devendo o agente ser punido por crime tentado, segundo a maioria da doutrina[ix].

No caso em questão, o objeto é absolutamente impróprio. A licitação, ainda que não houvesse fraude, não possibilitaria a adjudicação do objeto ao vencedor. Servia apenas para comprovar um fato, e não para selecionar a melhor proposta para a Administração, permitindo a adjudicação do objeto ao vencedor do certame. Todo o procedimento era um crime de ensaio, pois o agente provocador, ao mesmo tempo em que conduziu as empresas para a prática do delito, promovera todas as cautelas para que não houvesse consumação.

Impunidade dos envolvidos e a liberdade na produção da prova de gravação ambiental

As fraudes mostradas no programa podem servir de notícia-crime, mas não fazem prova legítima para servir de fundamento único para denúncia. Não há dúvida de que a autoridade policial, em vista das irregularidades noticiadas, pode iniciar investigação para comprovar a prática dos crimes. Desse modo, caso encontre outras provas da participação dos envolvidos, pode o Ministério Público denunciar os envolvidos. O fundamento para impedir a denúncia unicamente com a prova colhida no Fantástico é o mesmo que impede a instauração de processo administrativo com base exclusiva em denúncia anônima[x].

O problema está na dificuldade de colher outras provas que demonstrem a prática dos ilícitos. Durante a gravação, fica evidente a preocupação dos criminosos em cumprir não só a legalidade, mas também a economicidade. Todo o procedimento licitatório burlado estava mascarado sob uma legalidade irrepreensível. Quando a fraude ocorria na modalidade convite, três empresas eram convidadas, conforme determina a Lei de Licitações (artigo 22, § 3o, da Lei 8.666/1993). A prévia combinação dos preços a ser ofertados pelas empresas também garantia a compatibilidade da oferta selecionada com os preços do mercado, o que caracteriza a economicidade dos gastos públicos.

Nesse caso, a garantia constitucional da liberdade de produção de prova nas gravações ambientais tem enorme possibilidade de gerar a impunidade dos criminosos. É praticamente impossível encontrar outras provas que não seja a prova audiovisual numa fraude que respeita até a economicidade. Também é provável que as empresas, daqui para frente, revistem todo o ambiente antes de oferecerem propina. A prova produzida pela Rede Globo, nesse caso, além de inservível para instaurar ação penal, ajudará os criminosos a se acautelarem, cometendo impunemente fraudes futuras.

Isso demonstra ainda que o debate sobre a liberdade de produção de prova nas hipóteses em que o Constituinte não restringiu o direito à privacidade não é uma mera discussão sobre sopesamento de valores. Ao considerar que o interesse público sobressai no caso de gravação ambiental de ações clandestinas, é possível que o próprio povo seja prejudicado. Isso porque se permite que a prova sem a intervenção do Estado seja produzida com má qualidade. Além de não comprovar os fatos demonstrados, permite-se que o infrator acautele-se em fraudes futuras. Não se trata de defender decisões pragmáticas, que levem em conta unicamente as consequências da decisão em detrimento do valores, como criticou Dworkin[xi]. E sim de como defender o próprio valor do interesse público, analisando previamente as consequências da decisão que aparentemente o consagre.



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