Por Eder Fonseca _Panorama Mercantil – Adepto da Teologia da Libertação, o escritor,
jornalista e religioso dominicano Frei Betto é militante de movimentos
pastorais e sociais, tendo ocupado a função de assessor especial do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2004. Foi coordenador de Mobilização
Social do programa Fome Zero. Esteve preso por duas vezes sob a ditadura
militar: em 1964, por 15 dias; e entre 1969-1973. Após cumprir quatro anos de
prisão, teve sua sentença reduzida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para
dois anos.
Sua experiência na prisão está
relatada nos livros "Cartas da Prisão", "Dário de Fernando - nos
cárceres da ditadura militar brasileira" e "Batismo de Sangue".
Premiado com o Jabuti de 1983, traduzido na França e na Itália, "A Mosca
Azul – Reflexão Sobre o Poder", "Calendário do Poder",
"Batismo de Sangue" descreve os bastidores do regime militar, a
participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura, a morte de
Carlos Marighella e as torturas sofridas por Frei Tito.
Baseado no livro, o diretor mineiro
Helvécio Ratton produziu o filme Batismo de Sangue, lançado em 2007. Frei Betto
recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor
dos movimentos populares. Assessorou vários governos socialistas, em especial
Cuba, nas relações Igreja Católica-Estado. Nessa entrevista dada ao portal Panorama Mercantil,
ele fala de Lula, da Igreja Católica, da abertura política e econômica em Cuba
e de outros assuntos imprescindíveis ao Brasil e ao mundo.
Panorama Mercantil – A experiência de
estar muito próximo ao poder como assessor especial lhe trouxe alguma
experiência que não gostaria de ter presenciado?
Frei Betto – Foi uma experiência
muito rica trabalhar como assessor do presidente Lula no programa Fome Zero.
Tão rica que me permitiu produzir dois livros a respeito dela: "A Mosca
Azul – reflexão sobre o poder" e "Calendário do Poder", ambos
editados pela Rocco. Como descrevo em detalhes neste último livro citado, eu
não gostaria de ter presenciado a morte do Fome Zero, como aconteceu quando o
governo decidiu substituí-lo pelo Bolsa Família. O Fome Zero tinha caráter
emancipatório; o Bolsa Família tem caráter compensatório. De qualquer modo,
considero os governos Lula e Dilma os melhores de nossa história republicana.
Panorama – Muitos adversários do PT
dizem que o partido não tem uma visão de país, falando que a única coisa que
eles querem é a perpetuação na cadeira presidencial. Como vê essa afirmação?
Betto – O PT é, hoje, um partido em
crise de identidade. E eivado de contradições. Há nele militantes combativos,
comprometidos com os mais pobres, críticos ao sistema capitalista. E há também
aqueles que trocaram um projeto de Brasil por um projeto de poder – conquistar
espaços de poder ainda que isso exija alianças espúrias. Temo que o futuro do
PT seja ficar parecido com o PMDB.
Panorama Mercantil – O senhor disse
que o aborto é decorrência, na maioria das vezes, das próprias condições
sociais de uma parcela considerável da população, ou seja, das pessoas mais
pobres. O senhor é favorável então à descriminalização do aborto nesse casos?
Betto – Sim, sou favorável à
descriminalização. Admiro o sistema francês, que permite à mulher recorrer ao
serviço público de saúde quando decidida abortar. Porém, antes que o pedido
dela seja atendido, ela é cercada por médicos, psicólogos e ministros de sua
confissão religiosa, que tentam demovê-la do intento. E quase sempre o
conseguem. Isso reduziu drasticamente o número da abortos na França, além de
acabar com os abortos clandestinos, causa de morte de muitas mulheres.
Panorama Mercantil – A Igreja
Católica vem perdendo fiéis, sobretudo para as igrejas neopentecostais. O
senhor acredita que o discurso dela está "batido" e precisa ser
reformado urgentemente, ou isso se dá por outras circunstâncias que fogem do
controle?
Betto – Não é a questão do discurso,
e sim da postura. A Igreja Católica precisa reformar sua estrutura ministerial
e admitir ordenar sacerdotes homens e mulheres casados. O celibato deveria ser
optativo. Não há fundamento bíblico para o celibato obrigatório. Prova disso é
que Jesus curou a sogra de Pedro. O que faz concluir que Pedro tinha mulher
(Marcos 1). E Jesus ainda escolheu Pedro para primeiro papa.
Panorama – A grande mídia faz vistas
grossas para os principais problemas do país?
Betto – De modo algum. A grande mídia
trata, amiúde, de problemas candentes como saúde, educação, pobreza, corrupção
etc. O que faz falta é ela ouvir também os movimentos sociais, as vítimas, os
excluídos. Em geral, ela é elitista, sobretudo no que concerne à cultura.
Panorama – O senhor tem uma visão
extremamente crítica em relação aos EUA, dizendo que o país é o que mais
desrespeita os direitos humanos no mundo. Acredita que exista uma solução a
médio prazo para que esses desmandos não aconteçam mais, como em Guantánamo,
por exemplo?
Betto – Minha esperança é que a atual
crise do capitalismo venha a suscitar outros movimentos como Ocupem Wall
Street, mais propositivos que denunciativos. O dinheiro fez a cabeça de Tio Sam
e só a falta dele – como ocorre agora na União Europeia – será capaz de
mudá-la.
Panorama – O senhor acredita que o
regime cubano caminha para o capitalismo?
Betto – Os cubanos estão muito
atentos para evitar esse risco. Não querem copiar o modelo chinês e já sabem
que o estatismo total é inoperante. Assim, buscam criar um modelo híbrido, no
qual os direitos sociais sejam priorizados e o socialismo não seja afetado pela
iniciativa privada.
Panorama – Muitos militares afirmam
que a Comissão da Verdade será revanchista, poupando os esquerdistas. O senhor
vê possibilidades de isso acontecer realmente?
Betto – A Comissão deveria ser da
Verdade e da Justiça. Não se justifica o Brasil fazer vista grossa frente aos
crimes cometidos pela ditadura em nome do Estado. E isso nada tem de
revanchismo. Revanchismo seria querer torturar os algozes ou assassiná-los.
Queremos justiça, ou seja, que esclareçam como e por ordem de quem funcionava o
aparelho repressivo e que paguem pelos crimes cometidos, como nós, que
resistimos à ditadura, fomos dura e injustamente penalizados.
Panorama – Muita gente diz que a
ideologia esquerda e direita não existe mais. Se não concorda com essa
afirmação, então aponte para nós onde podemos encontrar esses dois pólos com
clareza em nossa sociedade?
Betto – Nada mais ideológico do que
supor que alguém prescinde de ideologia. Como assinala Norberto Bobbio, é
simples: são de direita todos aqueles que consideram a desigualdade social
aceitável. E de esquerda todos aqueles que a consideram uma abominação a ser
erradicada.
Panorama – Especialistas afirmam que
a luta do MST não é legítima, pois custa uma fábula aos cofres públicos. Como o
senhor enxerga esse fato?
Betto – O MST ajuda o governo a
economizar mantendo milhões de famílias sem-terra em acampamentos e
assentamentos. Se ele não existisse, essa famílias teriam migrado para as
cidades e engrossado o cinturão de favelas. E o governo teria que gastar mais
com aparato policial, cadeias, prisões, sistema judiciário etc. Caro para o
governo é o Brasil não ter feito, até hoje, a reforma agrária, na contramão do
exemplo dos demais países do Continente.
Panorama – O presidente do PPS,
Roberto Freire, disse que o ex-presidente Lula foi uma fraude política. Lula
foi uma fraude política ou o melhor presidente da história desse país, como
muitos dizem?
Betto – Lula foi o melhor presidente
que o Brasil já teve. Fraude política é um comunista se aliar à direita e aos
mais notórios corruptos do Brasil.
Panorama – O socialismo real falhou?
Betto – Como afirma Antonio Candido,
de modo algum. Graças a ele, o capitalismo se viu obrigado a fazer inúmeras
concessões, como admitir sindicatos, direitos trabalhistas, direito de greve
etc. O que fracassou foi um modelo socialista autocrático, governado por uma
elite distante dos anseios populares. Felizmente Cuba é uma exceção, e daí sua
resistência em mais de 50 anos de revolução.
Panorama – Por que mesmo tendo um
partido de esquerda no poder há pouco mais de 9 anos o Brasil ainda não conseguiu
diminuir a gritante desigualdade social?
Betto – Já diminuiu bastante. As
políticas sociais dos governos Lula e Dilma já tiraram mais de 20 milhões de
brasileiros da miséria absoluta, reduziram o desemprego a níveis
insignificantes, aumentaram a circulação de riqueza, permitiram que, hoje, haja
mais gente viajando pelo Brasil em avião do que em ônibus... No entanto, falta
mexer na estrutura do país, através de reformas como a agrária e a tributária,
para que tais conquistas sejam duradouras e a pobreza definitivamente
erradicada.
Via Brasil 247
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