Dois episódios me chamaram a atenção nos últimos
dias. Reúno-os aqui porque acho que, de alguma forma, são faces de uma mesma
moeda. O primeiro, divulgado fartamente pela mídia, diz respeito à decisão do
STJ considerando - em caso que envolvia uma menina de 12 anos -
que nem sempre o ato sexual com menores de 14 anos pode ser
considerado estupro. O segundo, que, por sua aparente ingenuidade, não mereceu
nenhuma observação nos veículos de comunicação, refere-se a um episódio da nova
novela da Globo, “Avenida Brasil”, em que se promove, de
brincadeirinha, o “casamento” de duas crianças, uma delas de 7 anos
de idade.
Junto esses dois fatos, um lamentavelmente real e
outro fruto da “criatividade” do novelista, porque os dois põem a nu um dos
problemas mais sérios da sociedade contemporânea: a forma como está sendo
encarada a infância.
A decisão jurídica parece ser mais uma – e
temos sido brindados por muitas, ultimamente – em que, em nome de princípios
“legais”, joga-se a dignidade e a moralidade para escanteio. Segundo a
ministra relatora, “não se pode considerar crime o ato que não
viola o bem jurídico tutelado – no caso, a liberdade sexual”, uma vez que as
menores a que se referia o processo julgado “se prostituíam havia tempos”
quando do suposto crime. Segundo transcrição na imprensa, no Acórdão que
consolidou a decisão relata-se que “a prova trazida aos autos demonstra, fartamente,
que as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem
inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo. Embora
imoral e reprovável a conduta praticada pelo réu, não restaram configurados os
tipos penais pelos quais foi denunciado”.
Já se discute a revisão dessa decisão, diante da
indignação geral, que conta com as vozes dos Ministros da Justiça e da
Secretaria dos Direitos Humanos e já chegou ao âmbito da ONU. Para a Ministra
Maria do Rosário, que fala em buscar medidas jurídicas cabíveis para reverter o
decidido, “a sentença demonstra que quem foi julgada foi a vítima, mas não quem
está respondendo pela prática de um crime".
O fato é que, legal ou não, a decisão do STJ permite
o entendimento de que a prostituição infantil – meninas de 12 anos, no caso – é
aceitável, não sendo objeto de punibilidade aqueles que dela se aproveitam. Não
querendo, aqui, enveredar pelos meandros jurídicos, vislumbro nesse caso
alguns aspectos que merecem reflexão. Em primeiro lugar, uma questão de
gênero, que afirma o poder machista do homem-sujeito sobre a
mulher-objeto. No caso, a justificativa da relatora caberia bem no que alguém
já batizou de “machismo às avessas”, quando a própria mulher o assume ou
admite. Por outro lado, será que não houve uma questão de classe? Convenhamos:
a justiça a favor do mais poderoso não é novidade entre nós... Finalmente, tão
ou mais grave, a decisão reforça uma postura que muitos adultos vêm
assumindo em relação às suas crianças, estimulando uma precocidade não raro
marcada por apelos à sensualidade capazes de gerar consequências que eles
mesmos irão lamentar. Claro que não é esse o caso da prostituição das meninas -
muito mais uma tragédia social do que comportamental. Mas a decisão do STJ parece
vincular o fato de as crianças se prostituírem a uma perda de inocência e de
ingenuidade, atribuindo-lhes consciência e informação. Será?
Chego aqui ao segundo fato, o episódio da novela
global que promoveu, entre as crianças de um lixão idealizado, uma cerimônia
lúdica de casamento de uma menina de 7 anos com um menino de idade
semelhante, com direito a beijo na boca... Não se veja aqui uma visão moralista
nessa observação. O assunto é realmente sério e me remete ao recentíssimo
artigo da Leila Cordeiro, que fundamenta bem as razões que levam a Globo a
promover todos os absurdos – incluídos aqui os vulgares – em busca de uma
audiência que ela acha que pode obter por esse caminho. As novelas estão
repletas de monstrinhos infantis, poços de precocidade indevida. Não resisto
aqui a um comentário paralelo, uma digressão: a Globo conseguiu
,agora, inventar um BBB com lutadores do MMA... Mas essa é outra história que
eu acho que ainda vai ter seus efeitos para a sociedade. Esperemos...
Os dois fatos aqui tratados permitem, talvez, uma
advertência: antes que seja tarde, a sociedade deve despertar para as reformas
que se impõem, não apenas a reforma política, mas também a do nosso
judiciário, que anda pródigo em escândalos internos e em decisões contrárias ao
interesse público. E também é preciso reformar a permissibilidade que confere à
mídia, pouco responsável e apenas interessada em audiência , o poder de
desinformar e, mais recentemente, o de deformar as mentes brasileiras. Um crime
que assume proporções trágicas quando envolve os segmentos mais jovens, as
crianças e os adolescentes.
Machado de Assis, buscando a frase no poeta inglês
Wordsworth, intitula um capítulo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” com
a afirmação de que “O menino é o pai do homem”. Sabemos que é isso mesmo. O que
vivenciamos e experimentamos na infância repercutirá em nossa maturidade.
O que forjarmos em nossas crianças definirá o seu futuro como indivíduos dignos
e conscientes, capazes de enxergar muito mais do que o próprio umbigo.
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