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Os estudantes de Jornalismo aprendem nas salas de aula que toda reportagem se inicia com uma pauta, um roteiro básico focado em um tema, com informações mais ou menos detalhadas sobre fontes e focos de cobertura, definido pelos veículos em função de sua linha editorial. As reuniões de pauta são “glamurizadas” de tal modo que os futuros profissionais imaginam estar diante de um grupo de jornalistas, solertes e experientes, prontos para um debate profícuo que norteará a cobertura da próxima edição. Para os jovens, sempre há uma reunião de pauta , comandada a partir da redação. Na prática, a boa reportagem começa por aí.
Como dizia o poeta, ledo engano. Embora reuniões de pauta ainda existam, é fácil perceber que, na maioria dos veículos, agora fragmentados em editorias, e, portanto, com tempos de produção diversos, as coisas não são tão óbvias nem tão charmosas.
Um olhar, ainda que ligeiro, pelas reportagens/notícias dos nossos jornalões vai nos encaminhar para fora das redações, se quisermos efetivamente identificar a origem das pautas. Em boa parte, elas têm sido gestadas, pensadas, planejadas nas assessorias de imprensa a serviço das empresas, entidades e mesmo do Governo. Com raras exceções, as pautas se originam das redações, ainda que estas possam, ingenuamente, imaginar que as tenham sob controle.
Se fosse assim, a imprensa teria descoberto as condições precárias das pistas dos aeroportos antes do desastre trágico da TAM há poucos anos, o maior da aviação brasileira. Se fosse assim, a imprensa estaria descobrindo que as notícias pró-transgênicos têm sido alimentadas por agências de comunicação e pelo CIB (Conselho de Informações sobre Biotecnologia) e não continuaria comprando gato por lebre, repetindo argumentos que têm a ver mais com lucros do que com ciência.
Se fosse assim, a imprensa não abrigaria a tese de que restringir determinado tipo de propaganda (bebidas, alimentos infantis, medicamentos etc) é uma afronta à liberdade de imprensa, quando se trata , na verdade, de preservar interesses de agências de propaganda e de anunciantes. Se fosse assim, a imprensa não continuaria repetindo que a indústria tabagista é socialmente responsável (enquanto mata milhões em todo o mundo e adoece outros milhões) e que são os indígenas que atrapalham as mineradoras e as empresas de celulose e não o contrário.
A imprensa brasileira não é tão investigativa como proclama ser, não é ética suficiente para cobrar, com legitimidade, esta postura de empresas e governantes e nem tem “rabo preso com o leitor” coisa alguma. Pelo contrário, esta visão (também “glamurizada” de objetividade e neutralidade) nunca existiu e nunca existirá em imprensa alguma porque, afinal de contas, todo veículo tem vínculo, tem passado e presente (que às vezes o condenam), tem patrão e financiadores diretos e indiretos. Não é preciso fazer curso de Jornalismo para saber que imprensa livre “é história para boi dormir”.
A imprensa brasileira precisa estar consciente da sua atual fragilidade , que se intensifica à medida que o departamento comercial bota o dedo nas redações ( em muitos casos chega a enfiar a mão toda e o pé todo, configurando um verdadeiro estupro profissional). Ela precisa iniciar, com urgência, um processo de reformulação, buscando aumentar a sua massa crítica. Deve substituir os equivocados “projetos de mercado” e “publieditoriais” por um jornalismo realmente comprometido com o debate público e não ficar proclamando a sustentabilidade de bancos e agroquímicas, predadores por excelência.
A imprensa brasileira precisa deixar de ser pautada pelo oficialismo governamental ( ela reclama do Governo mas não vive sem ele, como a Amélia que, pelo menos na música, gostava de apanhar!) e desconfiar mais das coletivas regadas a vinho e camarão e dos executivos adestrados em programas de “media training”.
Certamente, o cenário atual tem a ver com o “encastelamento” dos profissionais nas redações, buscando informações prontas (não investigadas) na Web, nos releases empresariais ou nos sites dos poderes legislativo e executivo. Tem a ver com a insistência em ouvir repetidamente os mesmos políticos, as mesmas autoridades, os mesmos empresários, como se o debate devesse ser encaminhado sempre a partir das mesmas fontes, algumas das quais com pouca coisa pra dizer e muita coisa pra ocultar.
As reuniões de pauta só poderão ser frutíferas para a cidadania (as reuniões atuais, quando existem, favorecem mais os anunciantes e as agências de comunicação a serviço das grandes empresas) se os jornalistas, previamente, se dispuserem a investigar, a enxergar além da notícia, a confrontar informações, a buscar por conta própria aquilo que as fontes jamais entregarão de bandeja.
Os jornalistas e os veículos dependem hoje das investigações da Polícia Federal (isentas?), dos fuxicos de políticos e autoridades, e vivem produzindo a partir de “offs”. Para que possamos resgatar as reuniões de pauta autênticas, com certeza teremos que mudar a cabeça da maioria dos jornalistas e dos veículos, já acostumados a um sistema de produção burocrático, insosso, insípido e inodoro, uma mentalidade transgênica porque uniforme, estéril e contrabandeada de outras praias.
Se as reuniões de pauta voltarem a acontecer sob o controle efetivo das redações, talvez tenhamos chance de encontrar, nas bancas, veículos mais plurais, mais inteligentes e menos previsíveis. Talvez as manchetes e as chamadas de capa deixem de ser as mesmas em todos os veículos e comecemos a encontrar novamente os jornalistas cruzando as ruas e não apenas frequentando os saguões refrigerados das empresas, os corredores do Congresso e as salas da Fiesp.
Não há outra saída: para pautar de verdade, é necessário abrir os olhos, arregaçar as mangas, gastar sola de sapato e descartar a mesmice. As boas pautas não costumam cair no colo e só podem ser feitas com autonomia e coragem. Exatamente o contrário do que propõe o Departamento Comercial, preferem os anunciantes e andam fazendo os jornalistas preguiçosos.
Os estudantes , quando chegam às redações, logo descobrem a dura verdade: as pautas estão sendo arquitetadas fora das redações. Sem qualquer “glamour” mas contaminadas por lobbies e interesses. È pena porque muitos deles acabarão aceitando as regras do jogo. E em jogo de cartas marcadas, o Jornalismo e a cidadania sempre perdem. Nesse caso, vale a pena chorar pelo leite derramado.
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